
Por Guilherme Moraes – Advogado, Especialista em Direito do Consumidor, Dirigente do PROCON Municipal de Marília (2004 a 2013 / 2017 a 2024).
A liberação das plataformas de apostas esportivas, as populares bets, inaugurou uma nova fronteira na economia digital brasileira. Milhões de brasileiros agora têm acesso, a qualquer hora e lugar, a aplicativos que prometem ganhos rápidos e fáceis — mas que também escondem um risco silencioso: o endividamento compulsivo.
O que parece entretenimento pode, em pouco tempo, transformar-se em dependência financeira e emocional, com consequências sociais profundas. E o Direito do Consumidor, que sempre acompanhou os movimentos do mercado, precisa agora adaptar-se a esse fenômeno de massa.
A Lei nº 14.181/2021, conhecida como Lei do Superendividamento, representa um divisor de águas nesse debate. Ao atualizar o Código de Defesa do Consumidor, a lei introduziu conceitos como crédito responsável, educação financeira obrigatória e preservação do mínimo existencial — o valor indispensável à sobrevivência digna da pessoa e de sua família.

Essa legislação, nascida de uma visão humanista e preventiva, busca tratar o superendividamento como uma doença social. O cidadão que, por boa-fé, se vê incapaz de pagar suas dívidas sem comprometer o básico — moradia, alimentação, saúde — precisa ser acolhido, não punido. O mesmo raciocínio deve ser aplicado às novas formas de endividamento digital que emergem com as bets.
O marketing emocional, que associa sucesso financeiro à sorte e à rapidez de um clique, configura o chamado assédio de consumo — prática expressamente vedada pelo artigo 54-C do CDC. Além disso, ao ocultar os riscos e as probabilidades reais de perda, muitas plataformas violam o princípio da informação clara e adequada, base de toda a política nacional de relações de consumo (art. 6º, III, do CDC).
Há, portanto, uma convergência evidente entre o espírito da Lei do Superendividamento e a necessidade de regular as apostas digitais. Assim como bancos e financeiras foram chamados à responsabilidade por conceder crédito de forma predatória, as bets também devem ser responsabilizadas pelos danos sociais que provocam, sobretudo entre os mais vulneráveis — jovens, desempregados e famílias de baixa renda.
O princípio da boa-fé, consolidado no artigo 4º, III, do CDC, exige que os fornecedores ajam com lealdade, cooperação e cuidado. Aplicado às plataformas de apostas, ele impõe limites éticos e jurídicos claros: transparência nas odds, políticas de jogo responsável, bloqueio de contas compulsivas e controle de gastos. São medidas básicas, mas indispensáveis para evitar a ruína financeira de milhares de consumidores.
Em última análise, a defesa do consumidor é também uma política pública de inclusão e dignidade. Quando o Estado autoriza uma atividade de alto risco, como as apostas digitais, deve assegurar que os cidadãos tenham meios de proteger-se de seus efeitos colaterais. O lazer pode ser legítimo; o desespero, não.
A sociedade brasileira precisa, portanto, escolher em que aposta quer investir: na ilusão do lucro fácil ou na construção de uma cultura de responsabilidade, equilíbrio e educação financeira. Porque, no fim das contas, a verdadeira aposta que vale a pena é a da consciência.

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